Jornal Caiçara encerra as atividades após 71 anos

Em 21 de maio, o Jornal Caiçara, segundo mais antigo em atividade no Vale do Iguaçu, encerrou suas atividades com uma edição de despedida. Criado por Dídio e Lulu Augusto, o informativo permaneceu na família por sete décadas. Conversamos com Delbrai Augusto Sá, um dos responsáveis pelo Caiçara, a respeito da decisão.

Jornal Caiçara encerra as atividades após 71 anos

Foto: acervo Jornal O Comércio

Confira:

Jornal O Comércio (JOC): Delbrai, relate um pouco da história do jornal Caiçara.
Delbrai Augusto Sá (DAS): O Jornal Caiçara fez sua última edição semana ada, no dia 21 de maio de 2025. Ele completou 71 anos, 9 meses e 9 dias, nas mãos da família Augusto. Começou lá atrás, em 1953, com meu avô, Dídio Augusto, e com minha tia Maria da Luz Augusto, mais conhecida como Lulu Augusto. E o jornal permaneceu até essa data nas mãos de nossa família, ando por ela quatro gerações, começando com meu avô, depois tia Lulu, tio René e tio Lamartine. Depois eu, minha prima Janice. Depois as minhas duas filhas, Nina Rosa, Mayara e minha enteada, Mariana e meu primo Daniel. Então são quatro gerações diferentes que deram continuidade a esse trabalho iniciado lá no início da década de 50.

Em 1953, a minha tia Lulu estava morando em Curitiba e havia recém voltado. Ela morou lá de 1948 ao começo de 1953. Teve um jornal lá, chamado Jandaia, que era um jornal literário, e ela decidiu voltar para cá, porque a sócia dela foi morar em Portugal. E aí, nos microfones da Rádio União, rádio pioneira, por muitos anos chamada, que fazia parte aqui das organizações do Grupo Verde Vale, ela escreveu uma rádio novela chamada O Crime do Iguaçu, que narrava aquele episódio do insidioso, sórdido crime que vitimou a menina Zilda Santos, na época com apenas 13 anos.

E todo mundo sabia, ou imaginava quem eram os algozes. A novela foi ao ar com os nomes muito semelhantes aos nomes verdadeiros dos assassinos e estupradores e perpetradores daquele atroz crime. E na semana em que o último episódio seria levado ao ar, esses algozes entraram na justiça temendo que os nomes deles fossem revelados, porque a emissora dizia que no último capítulo os nomes verdadeiros seriam revelados. Tinha uma audiência enorme. A cidade parava para ouvir a novela. Entraram na justiça e conseguiram fazer com que o episódio não fosse ao ar, fosse proibido. Então a novela ficou sem final.

E nessa época, o meu avô, Didio Augusto, mantinha uma coluna no Jornal O Comércio, que era de propriedade do senhor Hermínio Millis. Eles eram muito amigos. São moradores históricos, personagens ilustres da nossa história local. E meu avô veio à redação do jornal (para publicar o último capítulo no jornal) e o professor Hermínio disse que não podia fazê-lo porque corria o risco de ser também processado. Meu avô entendeu, ficou um pouco indignado, mas entendeu. E aí foi para casa e disse que faria um jornal, nem que tivesse um único número. Ele teve 2.601 números.

O jornal Caiçara nasce ali para que a tia Lulu, que era quem iniciou essa campanha para tentar com que os culpados fossem realmente processados e tornados culpados. Se bem que a essa campanha não começou com a tia Lulu. Começou em 1948, logo após o crime do Iguaçu, com o meu tio Dante de Jesus Augusto, que dá nome à biblioteca da Unespar.

O tio Dante tinha um programa na Rádio União, que era chamado Bom Dia para Você. E foi justamente nesse programa que o tio Dante começou a divulgar as questões alusivas ao crime. E o tio morreu em 1951, precocemente, aos 39 anos, em Curitiba. E a tia Lulu quis dar continuidade à essas investigações tentando chegar a elucidação do crime, o que acabou nunca sendo conseguido.

JOC: Era um assunto delicado para se abordar com a sociedade.
DAS: E veja que tia Lulu era uma mulher, e em 1953 ela tinha 23 anos. Era uma mulher solteira. Imagine você o patriarcado 80 anos atrás. Se hoje ele ainda é atroz, ainda em certas relações a misoginia prevalece de forma absurda e obscurantista. E tia Lulu enfrentou isso com muita coragem. E teve a coragem de fundar o jornal e mantê-lo por tantos anos.

JOC: O que foi determinante para essa decisão de encerrar as atividades?
DAS: Foi uma decisão cuja gestação demorou mais de um ano. Íamos pensando nisso. Primeiro a grande dificuldade em ter anunciantes, porque o jornal e uma rádio precisa, para sobreviver, de anunciantes. Sejam eles governamentais ou de empresas privadas. Você tem essas dificuldades em ganhar anunciantes. Isso foi um fator preponderante. E segundo, como eu disse anteriormente, eu tenho uma posição política progressista, libertária, e aí é preciso que você, às vezes, faça concessões para políticos com os quais eu não comungo mais do ideário deles, e aquilo para mim foi se tornando uma violência, sabe? Tinha pessoas que me cobravam, amigos meus que falavam: você tem uma posição aqui, mas o jornal tem uma outra linha, como é que fica? Mas eu preciso sobreviver, né? Termino usando uma frase que não é minha. “Preferimos morrer em pé do que vivermos ajoelhados”.

Nos anos 70, tinha uma calça jeans chamada West Top, cujo slogan era: “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada. West Top”. E eu digo que liberdade é mais que uma calça velha. Também é. Eu gosto muito de uma calça velha, azul e desbotada. Mas liberdade é mais do que isso. É você poder dizer aquilo que você quer dizer sem depender de absolutamente ninguém. E eu, aos 67 anos de idade, me recuso a ter que não dizer isso porque fulano não quer porque é um anunciante, é isso, é aquilo. Como isso foi se tornando cada vez mais difícil, decidimos encerrar a atividade.

JOC: Há um pensamento da família de manter viva a história do Jornal Caiçara, seja migrando para o digital ou mantendo o acervo?
DAS: Com relação ao jornal online, nós pensamos muito e não vamos continuar. Por que ele também demanda de custos. Você precisa de anunciantes e decidimos, de fato, não continuar mais. Com relação ao acervo, já entrei em contato com o professor Vitor Marcos Gregório, que é o responsável pelo Arquivo Histórico Municipal. Vitor é nosso colunista, historiador, doutor e PHD em história. Estudou em Berlim, é uma figura ímpar, um dos grandes intelectuais que residem hoje em União da Vitória. E vou fazer uma doação dos arquivos do jornal para o Arquivo Histórico Municipal e Vitor já me disse que vai digitalizá-los, até para que fiquem lá, à disposição. Ficarão lá os arquivos, os jornais impressos estão todos em livros de capa dura, desde 1953 até 2024, vou fazer agora desses poucos exemplares de 2025. E estarão lá à disposição dos consulentes. O arquivo do jornal O Comércio já está digitalizado. E Caiçara terá o mesmo caminho do seu irmão mais velho.

JOC: Qual o legado que o Jornal Caiçara deixa para a comunidade?
DAS: Primeiramente eu não posso deixar de mencionar a história de Maria da Luz Augusto, minha querida tia Lulu. Como eu disse, ela iniciou um jornal com 23 anos. Mulher solteira, nunca casou, permaneceu solteira. Numa época em que o patriarcalismo era imenso, ela teve a coragem de fazer e continuar o jornal e mostrar que é possível, mostrar para as mulheres que é possível uma mulher exercer uma profissão, seja no jornalismo, no direito, na medicina, seja onde for, sem precisar depender do marido, do pai, do irmão, do tio. É possível fazer sozinha. Claro que tia Lulu contou com a família, mas foi a idealizadora que levou em frente durante toda sua vida.
(…) O legado é de coragem, um legado de que é possível fazer um jornal numa pequena cidade, por uma mulher, continuá-lo durante 72 anos. Fomos juntos com o jornal O Comércio, nós somos precursores do jornalismo online, começamos no final dos anos 90, tanto nós quanto vocês, o nosso fica um legado. Vocês, espero que continuem o legado por muito tempo. Pelo menos até os 100 anos.

JOC: Se você pudesse definir em uma frase o que foi o Jornal Caiçara, qual seria?
DAS: Coragem. Não tenho dúvida. Restrinjo até em uma palavra. Coragem. Porque a tia Lulu precisou de muita coragem para poder fazê-lo. Teve muita resistência e permaneceu em pé até o último dia de sua vida.

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